Uma petição pela melhoria das condições de vida de doentes com Crohn e retocolite ulcerativa deu entrada no último fim de semana no parlamento de Portugal
Nos Estados Unidos, a sensação de humilhação de uma adolescente de 14 anos foi o pontapé de saída para mudar a lei. Em Portugal, Vera e Ângela esperam ajudar a fazer a diferença na vida de 20 mil pessoas
Ally Bain fez história nos Estados Unidos
Tinha 14 anos quando um dia, numa loja em Chicago, pediu para usar o banheiro e não a deixaram. Há uns tempos, ao recordar a história, usou um verbo mais forte: implorou. Diagnosticada três anos antes com Crohn, doença inflamatória intestinal que pode gerar episódios de cólicas dolorosas e incontinência, o não do funcionário deu lugar a um “acidente” que a marcou para sempre e seria o início de uma batalha legal pelo direito de pessoas com doenças intestinais terem acesso a qualquer banheiro em qualquer lugar.
O movimento em torno do “Restroom Access Act” – ou “Ally’s Law”, como também é conhecida a legislação nos EUA – começou no estado do Illinois em 2005 e, desde então, leis idênticas já foram adotadas em 16 estados norte-americanos.
Agora, defende uma petição que nas últimas semanas reuniu quase 11 mil assinaturas, é a vez de os doentes portugueses deixarem de estar sujeitos a ter de passar por situações parecidas.
O acesso prioritário a qualquer WC, mas também a isenção de taxas moderadoras ou a inclusão deste grupo de doenças numa portaria de 1989 que protege os trabalhadores em situações de mobilidade, são alguns dos pedidos.
Vera Gomes, primeira autora da petição, contou ao i que a Lei de Ally, que fez caminho nos Estados Unidos, foi uma das referências para avançar com a iniciativa.
Três meses depois de ter lançado a petição, a analista política de 37 anos admite que não imaginava tanta adesão e espera agora por um compromisso no parlamento. O texto com as cerca de 10 600 assinaturas foi submetido aos serviços da Assembleia da República no último domingo, revela, e o número é suficiente para haver debate em plenário, mesmo que leve algum tempo. Além disso, já se reuniram com deputados de alguns grupos parlamentares, que estão sensíveis para o problema.
Usar fraldas para sair de casa
Diagnosticada aos 27 anos com retocolite ulcerativa, Vera partilha que precisar de ir a um banheiro num espaço público e ver esse acesso ser negado não é assim algo tão raro para alguém que vive com uma doença inflamatória intestinal, daí a proposta de criarem cartões de acesso prioritário a WC’s que seriam atribuídos quando os doentes passam pelo seu centro de saúde.
“Uma pessoa com estas doenças tem episódios de emergência que às vezes nem 30 segundos dão para chegar a um banheiro. Se estivermos numa farmácia, numa loja de roupa, e não pudermos usar os banheiros do pessoal, torna-se difícil”, diz Vera, que há uns tempos, numa loja no Chiado, viu o pedido ser-lhe negado mesmo depois de explicar ao funcionário o que tinha.
Em 2016, num período de maior crise da doença, Vera começou a usar fraldas para sair de casa.
“Não deixei de fazer as coisas, mas muitas pessoas deixam. Há uma questão de perda de dignidade, que é o que as pessoas sentem quando se borram pernas abaixo. E isso dá medo de sair de casa. E, depois, tudo isto tem um impacto psicológico que pode agravar ainda mais a doença.” Hoje, algumas associações de doentes emitem cartões, mas ter de explicar o processo em cada estabelecimento e serem reconhecidos nem sempre é linear, conta Vera. “Não têm força legal, por isso dependemos da boa vontade alheia.”
Em relação às taxas moderadoras, as contas também não são difíceis de fazer.
Mesmo estando em remissão desde o fim do ano passado – portanto, com a doença mais controlada –, nos primeiros três meses do ano, Vera precisou de ir dezenas de vezes ao hospital ou centro de saúde para consultas, análises ou urgência. “Costumo dizer que já passei as passinhas do Algarve mas, comparando com outros doentes, o meu caso não é dos mais graves. De qualquer forma, tendo em conta o poder de compra em Portugal, o rombo no orçamento é brutal”, diz a peticionária, lembrando que a estas despesas se somam outras. “Apesar de a medicação ter 90% de comparticipação, muitas vezes há indicação para suplementos vitamínicos e outros, como probióticos, que não têm apoio.”
O terceiro pedido que fazem na petição prende-se com um despacho do final dos anos 80, nunca atualizado, que define uma lista de doenças incapacitantes. Este despacho permite aos funcionários e agentes do Estado com algumas condições de saúde que exijam tratamentos “onerosos e prolongados” um maior número de ausências do trabalho, além de ser tido em conta, por exemplo, em decisões relacionadas com mobilidade. “São doenças em que uma pessoa pode ter uma crise de um dia para o outro e um polícia, um professor ou um médico passariam ter mais garantias em termos profissionais, por exemplo, de não serem colocados a mais de x quilómetros da área de residência.”
Dar sentido à doença
Agora que a petição está encaminhada na Assembleia da República, Vera sublinha que o que a move é o mesmo desde o início: tentar fazer de uma experiência que tinha tudo para ser só angustiante qualquer coisa de útil para si e para outros. “No início, quando fui diagnosticada, foi muito difícil. O meu cérebro estava a trabalhar a mil à hora, mas o meu corpo só dava 100. É uma doença limitativa, para a vida, e que de um momento para o outro pode pôr tudo em standby. Mas acho que tudo pode ter um lado bom.”
Foi com esse espírito que continuou a trabalhar na área que escolheu, com viagens frequentes, e foi essa a convicção que a levou a criar uma comunidade no Facebook, a começar a escrever sobre a doença no seu blogue “Escadinhas do Quebra Costas” (a rua onde vivia em Lisboa antes de se mudar, em trabalho, para Bruxelas) e, por fim, a formalizar a petição, aliando-se a Ângela Vilas Boas Silva, portadora de doença de Crohn. “Para mim, fazer isto tudo foi a minha forma de dar um sentido a ter uma doença que de um momento para o outro pode mudar tudo”, resume Vera, que confessa que todo este processo não tem deixado de a impressionar. Tanto pela necessidade que as pessoas tinham de que alguém falasse em público de problemas que muitas vezes ficam escondidos – e que afetarão 20 mil portugueses –, mas também pela arbitrariedade. “Recebo muitos emails. Noutro dia falaram-me de uma menina com dois anos a quem foi diagnosticada colite, ou de uma de oito. As pessoas sentem que alguém se interessa.”
Em números
5 milhões de doentes no mundo
As doenças inflamatórias do intestino são doenças crónicas, autoimunes. Retocolite ulcerativa e doença de Crohn são os dois grupos principais
20 mil | Em Portugal estimam-se 15 mil a 20 mil doentes. Há dois picos de incidência, o primeiro entre os 15 e os 30 anos e o segundo entre os 60 e os 80 anos
SINTOMAS
- Dor abdominal
- Diarreia
- Sangue nas fezes
- Movimentos intestinais dolorosos
- Perda de peso
- Febre e mau estar geral
- Alguns doentes desenvolvem complicações reumatológicas, dermatológicas, as chamadas manifestações extraintestinais
TRATAMENTOS
Existem diferentes abordagens, dos corticoides aos medicamentos imunossupressores à medicação biológica, para tentar condicionar a resposta imunitária quando os tratamentos iniciais não são suficientes.
Casos estão a aumentar
Fator familiar Existe um fator genético associado: cerca de 20% dos doentes com Crohn têm um familiares com doença inflamatória do intestino.
Alimentação A prevalência destas doenças aumentou na América do Norte e na Europa desde os anos 50, subida que é mais recente nos países da Ásia, América Latina e Médio Oriente. Fatores ambientais, como uma dieta pobre em fibra e vegetais ou o estilo de vida ocidental, são possíveis explicações.
Fonte: Jornal i
Para dados e informações sobre essas doenças no Brasil, você pode consultar a Jornada do Paciente com Doença Inflamatória Intestinal.
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